O gás liquefeito de petróleo, conhecido pela sigla GLP e popularmente como gás de cozinha ou de botijão, é um combustível destinado principalmente ao uso doméstico e industrial. Por suas características e aplicabilidade, mais de 90% da população brasileira depende da distribuição do GLP todos os dias [1].
A cadeia produtiva do GLP se inicia nas refinarias onde o gás será extraído e refinado a partir das frações mais leves do petróleo para, então, ser direcionado às distribuidoras. Por sua vez, as distribuidoras revendem o GLP na forma de envasados (botijões e cilindros) para os revendedores autorizados que abastecerão residências e pequenas empresas, ou a granel para o consumo das indústrias, condomínios, comércios e ao agronegócio.
Neste contexto, a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) desempenha um papel fundamental na fiscalização [2] e regulação das atividades da cadeia produtiva, como exploração e produção, processamento, liquefação, transporte, regaseificação, estocagem e comercialização [3] do gás antes de o produto ser entregue às companhias de distribuição.
No presente artigo, será estudado o processo administrativo nº 48630.200179/2021-46, no qual fora aplicada multa a um revendedor fornecedor ante a revenda de recipientes transportáveis de GLP (botijões) em quantidade superior à capacidade total de armazenamento do revendedor adquirente, conforme estabelecido pelo artigo 15, §2º, da Resolução ANP nº 51/2016, analisando sua aplicabilidade frente ao princípio da legalidade, bem como pela busca da verdade material no processo administrativo.
Conforme mencionado, um revendedor fornecedor de porte nacional foi autuado pela remessa dos recipientes transportáveis de GLP em quantidade superior à capacidade total de armazenamento do revendedor adquirente, incorrendo na infração prevista no artigo 3º, II, da Lei nº 9.847/99 c/c artigo 15, §2º, da Resolução ANP nº 51/2016:
“Art. 3º. A pena de multa será aplicada na ocorrência das infrações e nos limites seguintes:
II – importar, exportar ou comercializar petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis em quantidade ou especificação diversa da autorizada, bem como dar ao produto destinação não permitida ou diversa da autorizada, na forma prevista na legislação aplicável:
Multa – de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais).”
“Art. 15. O revendedor de GLP somente poderá vender recipientes transportáveis de GLP cheios por meio de documento fiscal observados os arts. 13 e 14.
§ 2º. O documento fiscal deverá comprovar que a quantidade vendida, pelo revendedor fornecedor, não poderá ser superior à capacidade total de armazenamento do revendedor adquirente, considerando todas as áreas de armazenamento existentes no ponto de revenda de GLP, em quilogramas de GLP, de acordo com a autorização da ANP, independentemente se o produto for retirado na instalação do distribuidor ou do revendedor fornecedor ou entregue no estabelecimento do revendedor adquirente.”
De acordo com a autuação, ao desrespeitar a determinação legal, o revendedor fornecedor praticou ato infracional ao dar ao produto destinação não permitida pela legislação.
Neste sentido, o autuado sustentou que o princípio da legalidade impõe limites razoáveis entre as sanções mínima e máxima previstas no tipo sancionador, sob pena de descumprimento da obrigação de uma densidade normativa mínima por parte do legislador, balizando a discricionariedade administrativa a um parâmetro mínimo considerado normal.
O óbice ora analisado decorre da impossibilidade de uma resolução conferir tratamento limitativo que não foi objeto da lei própria, neste caso, da Lei nº 9.847/99. Assim, a previsão de infrações em sede de resoluções que extrapolam o previsto na lei em sentido estrito configura nítida violação ao princípio da legalidade.
A Constituição em seu artigo 5º, II, é clara ao dispor que ninguém será submetido a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
Logo, necessário se faz à validade da autuação que a vedação à determinada conduta, enquanto consubstanciadora de hipótese infracional, seja exteriorizada mediante atividade legislativa de edição de lei em sentido formal e material. Do contrário, estar-se-á admitindo que a administração pública legislasse supletivamente ao poder que foi instituído para tal finalidade, extrapolando, assim, a competência regulatória.
Tal entendimento encontra guarida no pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, exteriorizado por ocasião do julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.823-1/DF, assim ementada:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 5º, 8º, 9º, 10, 13, §1º, E 14 DA PORTARIA Nº 113, DE 25.09.97, DO IBAMA.
Normas por meio das quais a autarquia, sem lei que o autorizasse, instituiu taxa para registro de pessoas físicas e jurídicas no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou Utilizadoras de Recursos Ambientais, e estabeleceu sanções para a hipótese de inobservância de requisitos impostos aos contribuintes, com ofensa ao princípio da legalidade estrita que disciplina, não apenas o direito de exigir tributo, mas também o direito de punir. Plausibilidade dos fundamentos do pedido, ali ada à conveniência de pronta suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados. Cautelar deferida” (Tribunal Pleno, DJU, 16.10.98)
Com efeito, se mostra evidente a ilegalidade da multa imposta com base na Resolução ANP nº 51/16 por não haver respaldo na Lei de regência (9.847/99).
Tal entendimento encontra guarida também na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sintetizado na ementa abaixo transcrita, por ocasião do julgamento da Apelação Cível n° 1998.01.00.039923-5, na qual figura como parte o Conselho Nacional do Petróleo:
“ADMINISTRATIVO. CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA. AUTO DE INFRAÇÃO. IMPOSIÇÃO DE MULTA. RESOLUÇÃO CNP N° 15/82. ILEGALIDADE.
- É indevida a previsão de infrações e sanções administrativas por meio de Resolução. Somente a lei, em sentido formal e material, pode descrever infração e impor penalidades.
- Remessa Oficial e Apelação a que se nega provimento.” (Terceira Turma suplementar, DJU 11/03/2004).
Portanto, resta claro que ato administrativo não pode criar obrigações ou impor penalidades, pois não é lei, sob pena de infringência ao princípio constitucional da legalidade, na forma do artigo 5º, II, da Constituição e na jurisprudência dos tribunais pátrios.
Fiscalizar o abastecimento de combustíveis
No exercício da atribuição legal de controlar e fiscalizar o sistema nacional de abastecimento de combustíveis, prevista na Lei n° 9.478/97, artigo 8.º, XV, ao diretor da Agência Nacional do Petróleo é deferido poder para editar normas, de modo a orientar o setor para o atendimento de seus fins sociais.
Todavia, a autuação foi mantida pois se entendeu que a legalidade dessa forma de regulamentação é corroborada pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Mandado de Segurança n° 4.578/DF (96/0035654-8), reconhecendo o poder da autoridade competente na época para a regulação, o Ministro de Minas e Energia[4].
Já no que se refere à busca pela verdade material no processo administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua obra “Curso de Direito Administrativo”, ensina que é princípio obrigatório para a atividade administrativa, aplicável a todo e qualquer procedimento administrativo, o da busca da verdade material:
“Princípio da verdade material. Consiste em que a Administração, ao invés de ficar restrita ao que as partes demonstrem no procedimento, deve buscar aquilo que é realmente verdade, com prescindência do que os interessados hajam alegado e provado, como bem o diz Héctor Jorge Escola. Nada importa, pois, que a parte aceite como verdadeiro algo que não o é ou que negue a veracidade do que é, pois no procedimento administrativo, independentemente do que haja sido aportado aos autos pela parte ou pelas partes, a Administração deve sempre buscar a verdade substancial.” (MELLO, Celso Bandeira, 7ª edição, pág. 302)
Feita essa consideração inicial, é forçoso reconhecer que, ainda que o ônus de promover a desconstituição da infração seja do sujeito passivo autuado, a administração pública tem o dever da autotutela, constituindo interesse próprio o controle dos seus atos.
Desta forma, a administração não se desincumbe do dever de demonstrar a veracidade da autuação, posto que deve sempre buscar pela verdade real dos fatos, pilar fundamental do Estado Democrático de Direito.
Ora, a simples venda de GLP acima da capacidade do revendedor adquirente não indica, necessariamente, o armazenamento da aludida quantidade por parte do revendedor fornecedor; ao passo que o fiscal deveria fiscalizar o estabelecimento do revendedor adquirente in loco e não simplesmente basear a autuação na análise pura e simplista da nota fiscal.
Em não tendo assim agido, é patente o descumprimento do requisito de validade do auto de infração, insculpido no artigo 6º, V, do Decreto nº 2.953/99, já que não há qualquer elemento material hábil a caracterizar a infração alegada:
“Art. 6º. A infração constará de auto específico, que conterá, obrigatoriamente:
I – a qualificação do autuado;
II – o local, a data e a hora da lavratura do auto;
III – a descrição do fato infracional;
IV – a disposição legal infringida;
V – a indicação dos elementos materiais de prova da infração;
VI – quando for o caso, o local onde o produto ou bem apreendido ficará guardado ou armazenado, bem como a nomeação e identificação do fiel depositário, que poderá ser preposto ou empregado do infrator que responda pelo gerenciamento do negócio;
VII – a advertência ao fiel depositário, que assinará o termo próprio, de que é vedada, salvo com prévia autorização da ANP, a substituição ou remoção, total ou parcial, do bem apreendido, que ficará sob sua guarda e responsabilidade;
VIII – a assinatura do autuado e do autuante, com a indicação do órgão de origem, cargo, função e o número de sua matrícula;
IX – a qualificação das testemunhas, se houver;
X – a indicação do prazo para apresentação da defesa e o local onde deverá ser entregue.”
Neste sentido, não pode ser imputada prática de ato infracional à norma legal sem a devida comprovação, mediante prova robusta e inequívoca de sua ocorrência, sob pena de ausência da verdade material dos fatos.
Além disso, o artigo 13 da Lei nº 9.847/99, que rege o procedimento de fiscalização da ANP, dispõe que: “[A]s infrações serão apuradas em processo administrativo, que deverá conter os elementos suficientes para determinar a natureza da infração, a individualização e a gradação da penalidade, assegurado o direito à ampla defesa e o contraditório”.
Ilegalidade em comercialização
Assim sendo, na falta desses elementos, forçoso reconhecer a ilegalidade da infração concernente à comercialização dos recipientes transportáveis (botijões) em quantidade superior à capacidade total de armazenamento do revendedor adquirente, uma vez que não foi cumprido requisito necessário ao processo administrativo e não foi observado o princípio da busca pela verdade material.
No caso em questão, o argumento apresentado pela parte autuada não foi acatado, uma vez que aos agentes públicos é atribuída a presunção de legitimidade e veracidade em suas declarações. Essa presunção deriva da obediência ao princípio da legalidade, o qual exige que o fiscal esteja estritamente vinculado à forma e ao conteúdo legal. Portanto, a decisão considerou verdadeira a informação fornecida pelo agente público até que seja demonstrado o contrário.
Os princípios da legalidade e da busca pela verdade material não somente norteiam todo e qualquer processo administrativo, como devem fazer parte de qualquer autuação, não sendo cabível à administração pública apresentar nova circunstância passível de penalização do acusado em detrimento da ausência de previsão na lei de regência.
Assim, com esteio nos princípios constitucionais, eventual condenação não poderá ser admitida pela ANP, sob pena de infringência constitucional, como expõe brilhantemente a professora Maria Sylvia di Pietro:
“é essencial à legalidade do processo, pois equivale à denúncia do processo penal e, se não contiver dados suficientes, poderá prejudicar a defesa; é indispensável que ela contenha todos os elementos que permitam aos servidores conhecer os ilícitos de que são acusados” [5].
Desta forma, a ANP, ao desempenhar o papel de fiscalização e regulação das atividades do setor, deverá pautar suas decisões e entendimentos pelos princípios próprios da administração pública e do Estado Democrático de Direito, sob pena de agir em detrimento da sociedade.
No precedente ora examinado (processo administrativo nº 48630.200179/2021-46), a multa aplicada a um revendedor fornecedor ante a revenda de recipientes transportáveis de GLP (botijões) em quantidade superior à capacidade total de armazenamento do revendedor adquirente foi mantida, pois houve entendimento no sentido da validade da multa prevista na Resolução ANP nº 51/16 (norma infralegal) e da presunção de legitimidade e veracidade das declarações do fiscal autuante, por se tratar de um agente público.
[1] Vide em: https://www.consigaz.com.br/gas-glp/
[2] “Art. 1º da Lei nº 9.847/99. A fiscalização das atividades relativas às indústrias do petróleo e dos biocombustíveis e ao abastecimento nacional de combustíveis, bem como do adequado funcionamento do Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis e do cumprimento do Plano Anual de Estoques Estratégicos de Combustíveis, de que trata a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, será realizada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) ou, mediante convênios por ela celebrados, por órgãos da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
[3] “Art. 1º, § 3º da Lei nº 9.847/99. A regulação e a fiscalização por parte da ANP abrangem também as atividades de produção, armazenagem, estocagem, comercialização, distribuição, revenda, importação e exportação de produtos que possam ser usados, direta ou indiretamente, para adulterar ou alterar a qualidade de combustíveis, aplicando-se as sanções administrativas previstas nesta Lei, sem prejuízo das demais de natureza civil e penal cabíveis.”
[4] “É lícito ao Ministro de Minas e Energia restringir, em Portaria, a prática de operações interestaduais, envolvendo compra e venda de produtos do petróleo (CF. Art. 155, X, b e Art. 174).”
(MS n. 4.578/DF, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Seção, julgado em 23/9/1998, DJ de 18/12/1998, p. 281.)
[5] DI PIETRO, Direito Administrativo. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 639.
Fonte: Consultor Jurídico, por Janssen Murayama e Mariana Ferreira