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Ausência de estoque mínimo de etanol anidro à luz da ANP

O etanol (ou álcool etílico) é um biocombustível de matéria-prima vegetal, produzido por meio da fermentação do amido ou de outros açúcares, que se divide em duas espécies — anidro e hidratado —, residindo a diferença entre um e outro na quantidade de água presente em sua concentração.

Especificamente em relação ao etanol anidro, a presença de água pode chegar a 0,5%. A sutil influência da água no etanol garante o seu estado de “álcool puro”, permitindo-lhe a utilização na fabricação de tintas, solventes, entre outras finalidades que não a de combustível .

Com efeito, a comercialização deste biocombustível é regulada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a qual fiscaliza o setor de energia no Brasil. Criada em 1997 pela Lei nº 9.478/1997, a ANP consolidou-se como uma entidade autônoma, responsável por promover o desenvolvimento sustentável e a eficiência e segurança nas atividades relacionadas às indústrias de petróleo e gás e de biocombustíveis.

No contexto singular dos biocombustíveis, a ANP desempenha um papel fundamental na supervisão das atividades industriais para assegurar a qualidade dos produtos desde o início da cadeia produtiva até o destinatário final (em regra, a população).

Assim é que, no presente artigo, será analisado um caso concreto em que a ANP, em sua função fiscalizadora, aplicou sanção a uma empresa fornecedora, em razão de inobservância à norma reguladora do etanol anidro (Resolução ANP nº 67/2011, em vigor na época da autuação — e, portanto, usada no presente estudo —, mas atualmente revogada pela Resolução ANP nº 946/2023), relativamente à quantidade mínima da mercadoria não contida em seu estoque, ensejando a presunção de destinação diversa da autorizada à revenda do produto .

No caso em estudo, o fornecedor de etanol foi autuado com base nos artigos 10 da Resolução ANP nº 67/2011, e 3º, inciso IX, da Lei nº 9.847/1997, ante a constatação de que a empresa detinha estoque de etanol anidro em quantia inferior à mínima prevista na legislação, o que, por seu turno, atrai à fiscalização a presunção de que houve destinação distinta à mercadoria que não a prevista e autorizada pelo órgão regulador.

No contexto ora analisado, após realizada a fiscalização pela ANP, a empresa foi autuada em agosto de 2021 por conter, em seus estoques, a quantia de 3.276 m³ de etanol anidro, quando, por imposição normativa, deveria ter estocado o total (mínimo) de 9.069 m³ deste biocombustível, em contrariedade ao artigo 10 da Resolução ANP nº 67/2011.

Operações com etanol anidro

A Resolução ANP nº 67/2011 foi implementada para regulamentar as operações realizadas com etanol anidro, mormente para estabelecer o regime de fornecimento de etanol anidro entre fornecedores de etanol e distribuidores de combustíveis líquidos.

Entre suas prescrições, destaca-se o artigo 10, fundamental nesta análise, cuja disposição normativa impõe aos sujeitos envolvidos na comercialização de etanol anidro a observância da quantia mínima da mercadoria em seus estoques, em 31 de janeiro e 31 de março, de cada ano subsequente. Como regra, o produtor de etanol anidro, a cooperativa de produtores de etanol ou a empresa comercializadora deverá possuir estoque próprio em volume compatível com, no mínimo, 25%  e 8%, respectivamente, de sua comercialização de etanol anidro combustível com o distribuidor de combustíveis líquidos automotivos, no ano civil anterior.

Eventual inobservância ao comando normativo enseja a aplicação da multa prevista no artigo 3º, inciso IX, da Lei nº 9.847/1997, que trata das hipóteses de infração por construir ou operar instalações e equipamentos necessários ao exercício das atividades abrangidas pela lei, em desacordo com a legislação aplicável (no caso, a Resolução ANP nº 67/2011).

Como fundamento de defesa para desconstituir a autuação, a fornecedora se amparou no parágrafo 12 do artigo 10 da Resolução ANP nº 67/2011 , esclarecendo que a produção de etanol anidro se encontrava prejudicada em virtude do acometimento de diversos incêndios de grandes proporções em seus canaviais. Somado a isso, sustentou ter havido maior incidência de chuvas no final da safra do ano de 2019, o que teria lhe obrigado a antecipar o encerramento daquela safra, culminando na falta de estoque no período fiscalizado subsequente.

Todavia, de acordo com o órgão regulador que proferiu decisão indeferitória do pedido e manteve a autuação inicialmente lavrada, os fenômenos naturais e ambientais fazem parte do risco intrínseco do negócio, não podendo ser utilizado como supedâneo para os sujeitos da relação comercial infringirem normas regulamentares, sendo, inclusive, irrelevantes os motivos e a intenção que conduzem o infrator a omitir-se no cumprimento do dever legal.

Sob a perspectiva da administração pública, tem-se, como regra, que o administrador deve agir em plena conformidade com o que a lei prevê, dentro de seus limites e competências funcionais, não havendo espaços para atuação no preenchimento de lacunas normativas, a teor do que dispõe o princípio da legalidade, insculpido nos artigos 5º, inciso II, e 37, caput, da Constituição de 1988 .

Por outro lado, como fruto do desenvolvimento da jurisprudência pátria, na tentativa de liquidar a vastidão de incertezas jurídicas, foi consolidado no entendimento do Poder Judiciário que, embora basilar, a aplicação do princípio da legalidade em sua espécie estrita aos administrados, de forma reiterada e genérica, não se mostra amplamente efetiva à resolução para a qual lhe é proposta. Assim, em caminho contrário à absolutez decorrente do referido princípio, sobrevieram exceções, destacando-se a possibilidade de a administração pública rever e anular seus próprios atos, quando diante de hipóteses de ilegalidade, ou revogá-los, quando inoportunos.

Com vistas a equilibrar a relação administrador-administrado, a Constituição previu, também, a necessária observância ao princípio da razoabilidade pelo administrador, sobretudo mediante a utilização da técnica de ponderação de princípios, na qual o intérprete da lei, em face de um caso concreto em que se tenha um conflito principiológico, sopese, diante da proporcionalidade, o que melhor se aplica ao caso para, ao final, atrair a solução mais justa e eficaz às partes.

Análise caso a caso

Trazendo este contexto ao caso sob análise, nota-se que a dita irrelevância dos motivos e da intenção da empresa autuada, sustentada pela ANP, embora inteligível, mostra-se, por vezes, desarrazoada, servindo tão somente para acoimar os então infratores das normas reguladoras.

É essencial, portanto, ponderar, caso a caso, as nuances que possam vir a influir em determinado cenário jurídico, ainda que sob o prisma do “risco do negócio”, sob pena de, fundamentada no cumprimento da estrita legalidade, legitimar-se a atuação incondicional e obscurecida da administração pública perante os administrados. Não à toa o texto constitucional impôs, expressamente, a observância aos demais princípios que acompanham a legalidade, de forma a assegurar decisões justas e equânimes para cada caso concreto, sob pena haver ininterruptas conjunturas de verticalidade na relação administrador-administrado.

Como efeito da análise casuística de cada caso concreto, considerando-se todas as circunstâncias atenuantes e justificáveis ao eventual descumprimento das obrigações legais, ter-se-ão decisões escorreitas e mais aproximadas da eficácia social das normas jurídicas. É o que tem ocorrido em alguns casos similares, a exemplo dos fatos tratados no julgamento do recurso especial nº 1.766.116/RS, pelo Superior Tribunal de Justiça .

Nestes casos, os tribunais superiores e locais têm manifestado entendimento pela aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, justamente com o intuito de levar a cada caso concreto a solução mais justa e efetiva para as partes integrantes da relação jurídica. Em regra, são considerados elementos atenuantes, como, por exemplo, a natureza e o grau da infração, o porte econômico da empresa autuada, anotações desabonadoras, entre outras hipóteses.

Nesse contexto, é importante pontuar que as decisões administrativas têm sido cada vez mais levadas ao conhecimento do Poder Judiciário que, desviando de supostas ofensas ao poder de polícia do órgão regulador, reduzem as sanções aplicadas irrestrita e genericamente aos administrados, fazendo valer a preponderância de outros princípios constitucionais básicos frente à legalidade estrita, mediante a técnica da ponderação — o que, por seu turno, evidencia a fragilidade jurídica sobre a qual ainda se amparam determinados órgãos administrativos.

Sob este outro enfoque no entendimento do intérprete e aplicador da legislação, ter-se-á que não só a ANP como também outros órgãos fiscalizadores devem tomar decisões eficazes para o ambiente econômico, sem escapar ao intento de punir eventuais atos infracionais.

O caso sob análise expõe a necessidade de os órgãos reguladores promoverem uma necessária revisão de seus próprios atos, quando da competência fiscalizatória, sob um enfoque mais justo, equilibrado e que se aproxime da realidade contida em cada cenário fático-jurídico, mormente no que tange à aplicação de multas punitivas ante o descumprimento de normas instrumentais, eis que, por diversas vezes, tais sanções revelam-se ineficazes.

Neste sentido, amparando-se na utilização conjunta dos princípios constitucionais em detrimento da aplicação irrestrita do princípio da legalidade, a ANP estará diante de uma maior aproximação de suas diretrizes e objetivos institucionais, na medida em que contribuirá para a promoção de um ambiente mais equânime aos sujeitos envolvidos na comercialização de petróleo, gás e biocombustíveis.

Fonte: Conjur, por Janssen Murayama e Ricardo Maciel
Foto: Canva

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